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quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Enfim, um ateísmo com profundidade - Por Antonio Luiz M. C. Costa

O fato de que mais pessoas assumam abertamente seu ateísmo e livros sobre o tema se tornem best-sellers tem de positivo, no mínimo, uma redução do teor de hipocrisia ambiente. Entretanto, livros como os do britânico Richard Dawkins, zoólogo e de seu compatriota Christopher Hitchens, escritor e crítico literário, não dão uma idéia muito elevada do pensamento ateu ou de sua capacidade de persuasão.

Tais obras são bem fundadas em termos de ciências naturais, mas estão demasiado desinformadas em relação à história, à filosofia e à antropologia da religião para construir uma crítica que soe pertinente a crentes inteligentes. Tais autores declaram essa categoria irrelevante, como se toda a religião se reduzisse ao fundamentalismo e bastasse refutar Adão e Eva para pôr abaixo milênios de fé e de complexas elaborações éticas e metafísicas. Um paradoxo, pois aqueles para os quais a crença literal no Gênesis ou no Alcorão é indissociável da religião são os que menos darão atenção a seus argumentos.

Essencialmente, autores como Dawkins pregam para os convertidos, para estimulá-los a “sair do armário”. Tanto para os ateus menos preocupados com a opinião alheia, quanto para os religiosos abertos ao debate e para aqueles que têm dúvidas sinceras e profundas, tais obras são rasas e pouco relevantes.

É um ponto de vista bem diferente o do filósofo francês André Comte-Sponville. Em O Espírito do Ateísmo, (Martins Fontes, 192 págs), consegue convencer o leitor de que um ateu pode ser não só inteligente e cientificamente bem-informado, como também culto, profundo e sensível.

A primeira parte do livro, “Pode-se viver sem religião?”, talvez seja a menos satisfatória. Sua resposta é que não faz diferença alguma, o que não é lá muito animador e nem sempre é totalmente crível.

Conta a história do hipotético pai que perde a fé em Deus, mas avisa aos filhos: “no que diz respeito aos valores que procurei lhes transmitir, nada se altera: conto com que vocês continuem a respeitá-los”.

Naturalmente, não é por deixar de ser crente que alguém deveria inverter todos os seus valores – muitos deles tiveram ótimas razões para serem adotados – mas, quando se acredita que a moral existe apenas como necessidade humana e não como decreto divino transcendente, é de se esperar uma atitude mais crítica e racional, a relativização ou mesmo abandono de algumas regras tradicionais e talvez também a revalorização e mesmo a invenção de outras.

Comte-Sponville admite que sua posição em relação a preservativos e homossexualidade não é a da moral cristã tradicional, mas insiste: nas “grandes questões morais”, crer ou não nada altera de essencial. Na medida em que fala por suas escolhas e convicções pessoais, nada a objetar, mas não se vê como se poderia fazer disso um princípio universal.

O filósofo francês acredita-se comprometido com os valores tradicionais do Ocidente cristão, mesmo se não com a fé cristã. Mas é escolha sua essa fidelidade à tradição e ao passado, que compara explicitamente com a piada do rabino que se tornou ateu, mas ainda assim continua com as preces rituais, pois “que tem Deus a ver com isso?” Se tivesse nascido na China, Índia ou África, admite, seu caminho seria diferente.

Mas também o leitor latino-americano pode ficar em dúvida sobre se o pensamento do filósofo lhe é aplicável. Nestas terras parte índias, parte africanas, faz pouco sentido a fidelidade exclusiva à tradição ocidental cristã, um entre outros ingredientes de um sincretismo ainda por estabelecer e consolidar, inclusive na esfera dos valores... Mas por que também um europeu não poderia, à maneira de Voltaire e Montesquieu, relativizar essa monogamia ético-histórica e aceitar ter algo a aprender com os valores de outras culturas?

A troca da “fé” pela “fidelidade” é pouco promissora, se não se distingue este segundo conceito do mero conformismo. Com ou sem fundamento, a fé no cristianismo – como o islã e no budismo, em suas respectivas esferas de influência – contrariou valores e costumes preexistentes e impôs novos, e é razoável pensar que isso nem sempre é ruim. Seria paradoxal se o ateísmo desarmasse o pensador da possibilidade de criticar em profundidade a cultura na qual se criou.

Mais interessante é o chamado de Comte-Sponville a abrir mão da esperança no sentido teológico da palavra, ou seja, de uma vida eterna e infinitamente bem-aventurada. Propõe, em seu lugar, um alegre desespero: nada é para esperar, tudo é para fazer, no que depende de nós, ou para amar, no que não depende. É o contrário do niilismo, pois os niilistas não são desesperados e sim decepcionados – e não há como se decepcionar a não se em relação a uma esperança prévia.

A segunda parte do livro trata dos argumentos relativos à existência ou inexistência de Deus. Onde Dawkins, por exemplo, limita-se a descartar os tradicionais argumentos em favor da existência de Deus em três páginas como “tolos”, sem chegar a compreendê-los, o francês os discute e refuta no plano filosófico, como deve ser.

Em seguida, passa aos argumentos do ateísmo. Nada de noções de ciência para principiantes, mas sim pontos que vão ao fundo das razões filosóficas e psicológicas da crença. Por exemplo, a existência do mal, pelo qual nem só a humanidade é responsável. A mediocridade do ser humano, que não permite fazer uma idéia muito elevada do ser supostamente onipotente que o criou. E seu próprio desejo de um Deus, que torna suspeito todo impulso religioso como confusão entre desejo e realidade.

A terceira parte é, talvez, a mais interessante. Discute espiritualidade atéia, coisa de que Dawkins reduz ao senso de maravilha ante a complexidade do Universo e Hitchens sequer cogita. Comte-Sponville reconhece a experiência mística e o sentido espiritual do confronto com o infinito, a eternidade e o absoluto, dando-lhe o seu devido lugar – não o primeiro no mundo, mas o mais elevado no ser humano. Não se trata da consideração intelectual das leis da natureza, mas de um estado de consciência particular, de um sentimento espontâneo de paz, união e pertencimento.

Experiência silenciosa, mas que pode ser descrito como suspensão da banalidade, do já conhecido, pensado e dito, deixando-nos à frente com o novo, com o singular e com o mistério que é, ao mesmo tempo, a evidência do ser. Suspensão também da carência e da cobiça, permitindo o contato com a liberdade e a plenitude. Suspensão do ego e seu discurso, abrindo à experiência da unidade, simplicidade e verdade. Colocação entre parênteses da expectativa e do medo, do passado e do futuro, para que se possa constatar a serenidade e a eternidade.

O sentimento, enfim, de que não se precisa esperar pelo Reino, pois já estamos nele. É o Pentecostes dos ateus, ou o verdadeiro espírito do ateísmo, diz o filósofo: não o Espírito que desce, mas o espírito que se abre e se regozija. Não é a verdade e o absoluto que são amor, mas o amor que, às vezes, é verdadeiro e nos abre para o absoluto.

4 comentários:

  1. "O fato de que mais pessoas assumam abertamente seu ateísmo e livros sobre o tema se tornem best-sellers tem de positivo, no mínimo, uma redução do teor de hipocrisia ambiente.".

    De fato, temos que admitir que vivemos num mundo onde é comum ser ateu, ainda que muitos digam que crêem em Deus. Mas, crer em Deus é fácil, difícil é praticar. O verdadeiro ateísmo é viver como se Deus não existisse, independente do que se crê, e esse ateísmo prático está em alta e está dentro da maioria das igrejas.

    Comte era um positivista, suas idéias inspiraram o humanismo, e até uma religião secular da humanidade. Basicamente, se trata de trocar a fé em Deus pela fé no homem. Nada mais simples: não precisamos de Deus, podemos nos virar sozinhos. Temos a razão emancipada.

    Dizer que não faz diferença alguma ter religião ou não é mais forte do que você imagina. Se não faz diferença, é aí que se anula qualquer valor que a religião possa ter. Pois mesmo que você adote um valor negativo para a religião, isso ainda seria preferível do que não dar valor algum. Neste sentido é um ateísmo maior do que o de Dawkins.

    A questão é que todo valor se fundamenta em crenças. Mude as crenças, e inevitavelmente haverá subversão (não necessariamente inversão) dos valores. Como se sustentaria um baixo valor das obras humanas quando se parte apenas da necessidade humana? A ética sem Deus só seria equivalente a uma ética de um deus idealizado, um deus criado pelo homem e para o homem. Um Deus verdadeiro nos pediria coisas que nós, por nós mesmos, não faríamos e não gostaríamos de fazer, por não ver necessidade ou vantagem alguma. Aquilo que aceitamos por vantagem própria tem pouco ou nenhum valor.

    Você foi direto ao ponto ao falar da "relativização ou mesmo abandono de algumas regras tradicionais e talvez também a revalorização e mesmo a invenção de outras."

    Destradicionalização é um processo que não necessariamente nega os valores tradicionais, mas muda a percepção acerca deles. Por exemplo, uma tradição faz sentido se ela tem uma explicação dentro dos critérios científicos de hoje. Senão, passa a ser "mito". A tradição, portanto, não é mais respeitada por ser o elo entre o passado e o futuro, mas somente quando apresenta vantagem no presente.

    "Seria paradoxal se o ateísmo desarmasse o pensador da possibilidade de criticar em profundidade a cultura na qual se criou."

    Bem, acho que agora basta perceber em que cultura estamos realmente vivendo. Numa cultura cristã, ou numa cultura ateizante? O mesmo paradoxo é válido para cristãos, que também não podem deixar de criticar sua própria cultura.

    Esse alegre desespero, realmente oposto ao niilismo, também me parece combinar com o capitalismo. Celebração das obras humanas, daquilo que podemos fazer. Mas essa esperança, ao meu ver, decaiu depois das grandes guerras, e deixou um grande vazio na alma humana.

    A experiência mística surge como um substituto de algo que se perdeu. Deus morreu em nossos corações, urge colocar algo no lugar.

    Isso não prova que Deus existe, mas pelo menos mostra o vazio que sua ausência provoca. Por mais te tentemos preencher com o amor a nós mesmos, basta abrir os olhos e ver o resultado disso no mundo, e o alegre desesperado se torna mais um Cândido do que um pessimista. Pois o pessimismo em relação a Deus ou é otimismo em relação ao homem ou é niilismo.

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  2. Olá..
    Janos, Sua argumentação me deixou curioso por saber em qual dos ateísmos eu me enquadro ou não,risos.
    Acredito na existência de seres iluminados, como Gandhi, Buda e Jesus Cristo. Mas algo me impede de dizer com convicção: Sim, eu acredito em Deus!
    Não sigo religiões porque todas ao meu ver são manipuladoras, e não me agrada a ideia de um padre, pastor, guru, mestre, mentor intelectual ou seja lá o que for, dizendo como eu devo agir. Minha espiritualidade se baseia "apenas" na crença do poder da fé humana.
    Então, será que posso me considerar um ateu?

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  3. Anônimo,

    Você tem que saber o que é isso que te impede de dizer que acredita em Deus. Seria simplesmente porque a idéia de heteronomia não te agrada? Isso não é um bom motivo. Se for a questão das "religiões", bem, elas nada tem a ver com a fé cristã, no sentido em que você usou o termo. Mas se sua espiritualidade é esta que você descreveu como crença no poder da fé humana, então não está longe da fé evangélica e da teologia humanista. Isso é ateísmo, no sentido de que é viver como se Deus não existisse, isso é, sem depender Dele, e continuaria sendo mesmo que você dissesse com toda convicção: Sim, eu acredito em Deus! Porque falar é fácil, difícil é aplicar o significado disso na sua vida.

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  4. Muitos, ditos, "crentes", são somente de nomes. Na real, são tão descrentes quanto os "ateus". Não seria temerário dizer: tem tantos incrédulos dentro das religiões, quanto fora delas. Bastam observarem por quais "caminhos", grande parte de seus líderes estão se enveredando...

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