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domingo, 12 de julho de 2009

Sobre a salvação da minha alma - Rubem Alves


As coisas que tenho dito sobre Deus fizeram com que muitos dos meus leitores ficassem temerosos sobre o futuro de minha alma, no outro mundo. Acham que vou para o inferno. Eles pensam que, se a gente não pensar certo, Deus castiga. No inferno estão os pecadores que roubaram, fornicaram e mataram, e aqueles que ousaram pensar suas próprias idéias. Pensar certo, na cabeça deles, é pensar do jeito como pensam os padres e os pastores. Para tranquilizá-los vou me explicar.

Sobre a Bíblia. Eu a estudei muito e a amo. Para mim ela é um poema cujas palavras me confortam e me fazem mais sábio. Mas é preciso fazer uma distinção entre as palavras do poema, escritas, e aquilo que as pessoas pensam, ao lê-lo. Toda leitura é uma interpretação, isto é, os pensamentos das pessoas que a lêem. Todo sermão é pensamento de um homem e não pensamento de Deus. A interpretação é diferente do poema. Cada igreja, cada congregação, cada seita se organiza em torno de uma interpretação particular, palavra de homem. Mas cada uma delas tem a ilusão de que a sua interpretação é a Palavra de Deus. Sendo a Palavra de Deus, é única verdadeira. É muita presunção pensar que somente a minha seita interpreta certo e todas as outras interpretam errado. O que eu escrevo é a minha interpretação, tão problemática quanto qualquer outra. É preciso não se esquecer da sábia afirmação do apóstolo Paulo: Nós não sabemos direito as coisas; o que vemos são reflexos trêmulos e obscuros num espelho mal polido. É preciso não confundir os reflexos no espelho com o rosto verdadeiro que ninguém jamais viu. De Deus, a única coisa absolutamente certa que conhecemos é o amor (1 Cor. 13).

O que é a fé? É também uma questão de interpretação. Pessoas há que pensam que fé é um recurso mágico que garante que Deus vai nos atender. Para elas um Deus que não atende pedidos é um Deus muito fraco. Elas desejam garantias. Na minha interpretação fé é uma relação de confiança com Deus: é flutuar num mar de amor, como se flutua na água. Quem é que ama mais o pai? Aquele que é fiel ao pai porque ele lhe dá os presentes pedidos, ou aquele que ama o pai, mesmo que ele não lhe dê presentes? A gente ama o pai é pelos presentes, bênçãos, que ele dá, ou por ele mesmo? Amo a Deus mesmo que não me dê presentes.

Acho que Cristo enche todos os espaços do universo. Lutero falava da ubiquidade do corpo de Cristo e dizia que ele está presente até na menor folha, muito embora nas folhas o nome dele não esteja escrito. Quem ama uma folha ama Cristo. Quem tem amor respira Cristo, mesmo que não fale o nome dele. Tiago diz que os demônios sabem tudo sobre Deus e, no entanto, são demônios. Os reformadores falavam no Christo absconditus – isso é, o Cristo escondido, invisível, sem nome, em toda a Criação. Quem ama, mesmo que não cite as Escrituras e nem saiba o nome de Cristo, está nele. Cristo não pode ser engarrafado em nomes religiosos. Isso seria heresia, negar a sua onipresença.

As Escrituras Sagradas são um livro enorme. Muitos dizem que as Escrituras inteiras são inspiradas. Se realmente acreditam nisso, então todos os textos têm de ser objeto do nosso amor, são “palavras de Deus“. Noto, entretanto, que eles se comportam como se alguns textos fossem mais inspirados do que outros. Fazem silêncio sobre muitos textos. Por exemplo, nunca ouvi sermão católico ou evangélico sobre “Amada minha, em tua língua há mel e leite. Teus seios são como duas crias gêmeas de gazela...“ (Cânticos 4:11, 5); “Anda, come teu pão com alegria e bebe contente o teu vinho... Goza a vida com a mulher que amas todos os dias da tua vida...“ (Ecl. 9:7 e 9). Por que o silêncio? Acho que, secretamente, eles acreditam que uns textos são mais palavra de Deus do que outros...

E quanto ao destino de minha alma, não se preocupem. Foi Jesus mesmo que disse aos fariseus, religiosos que viviam citando as Escrituras e tentando converter os outros, que as meretrizes entrariam no Reino dos Céus antes deles. E notem: Jesus não disse: meretrizes arrependidas. Entram as meretrizes mesmo. Depois delas, então, entram os fariseus hipócritas e tudo o mais que Deus criou. Deus criou tudo, não é? Se ele criou tudo, vocês acham que ele ia entregar ao Diabo aquilo que saiu das suas mãos? Um Deus que é todo amor não pode ter, na eternidade, uma câmara de torturas sem fim em que as almas sofrem por pecados cometidos no tempo. Dívidas no tempo ficam dívidas eternas? Só se Deus for dono de banco...Quem iria ficar feliz com isso é o Diabo. E vocês acham que Deus está a fim de realizar os desejos do Diabo? No fim, o amor de Deus triunfa! E nós todos, vocês, eu, meretrizes, e tudo o mais, estaremos entrando...

(Transparências da eternidade, Verus, 2002)

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